Artista paulista sofre censura e acusação de crime em Minas em exposição que denunciava preconceito contra imigrantes

"Estou sem dormir. Ver a minha família associada à pedofilia e à pornografia infantil é revoltante"



Ricardo Coelho nasceu em São Paulo, mas está desde 2009 em São João del-Rei no circuito histórico de Minas Gerais. Na cidade ele atua como curador independente e designer de exposições, além de ser professor da Universidade Federal, a UFSJ. Lá, ministra aulas nos cursos de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas. Entre suas criações artísticas, uma em especial se conecta com sua história pessoal do artista. E infelizmente, apesar de ser um trabalho que denuncia a violência e o preconceito, foi acusado de pedofilia e sofreu censura durante sua passagem por Uberaba, no Triângulo Mineiro, em junho.
 
A mostra "Meu Corpo, Minha Morada" que ficaria em exibição por 30 dias na Galeria de Arte Rachel Machado, foi abruptamente prejudicada quando o presidente da Câmara de Vereadores, Fernando Mendes, do MDB, foi ao local e exigiu dos servidores saber quem havia autorizado a exposição das imagens que contêm nudez. Em vídeo publicado na internet o vereador aparece tomando satisfação dos funcionários e registrando um boletim de ocorrência em uma base móvel da Polícia Militar. Ainda na galeria, Mendes determinou a retirada de duas das 29 fotografias do projeto.
 
(confira aqui a manifestação do vereador: https://www.instagram.com/reel/CtK1YLgA-B3/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA== )
 
A exposição 
Fruto de uma experiência negativa na Espanha em que viu sua família envolvida, Ricardo produziu o ensaio fotográfico "Estrangeiros". "Na primeira semana em que nos mudamos para Barcelona no ano de 2014, eu, minha parceira e nossa primeira filha Valentina com três anos, precisamos recorrer à polícia por um golpe imobiliário do qual fui vítima. Durante três tardes inteiras tivemos que permanecer isolados numa unidade dos Mossos d'Esquadra, sendo muito hostilizados, até sugerirem que nós queríamos aplicar um golpe na Polícia", conta o fotógrafo.
Durante o tempo em que de denunciante passou na unidade da Polícia, todo o atendimento a Ricardo e à sua família foi feito na língua catalã, dificultando ainda mais a compreensão da situação. Ricardo conta: "pela primeira vez na vida senti na própria pele o que era o racismo e isso pelo simples fato de não dominar o idioma local, adotado como um signo identitário. Pela primeira vez pude entender o que era ser um estrangeiro".
   
Da dor à arte 
Após essa experiência e em suas andanças fora do circuito turístico de uma das regiões mais ricas da Europa, Ricardo sempre reparava os indícios e restos de casas demolidas. Silhuetas de cômodos, portas, janelas e pedaços delicados de azulejos ou ladrilhos decorados ilustrando o que agora eram terrenos baldios. "Eu tentava imaginar as histórias, as famílias e suas memórias. Eu acabei entrando em contato com a consequência mais nefasta desse contexto, ou seja, a situação precária e desumana dos imigrantes, sobretudo africanos, antes aceitos como mão de obra barata para a construção civil e, depois da crise de 2008, excluídos de toda a sua condição humana a ponto de preferirem ser literalmente invisíveis. Com a experiência que vivi eu pude entender a dor contida nessas histórias".
 
Foi dessa história vivida que surgiu a série "Memória Apagada", realizada ainda em 2014 e que circulou pelas cidades espanholas de Barcelona, Madrid, Valência e Huesca. Posteriormente outra série nasceu como fruto da experiência no exterior. "Estrangeiros", que nunca havia sido exibido na íntegra, com fotografias feitas em diversas localidades do Campo das Vertentes de Minas Gerais em 2016.
 
"Eu estava tentando imaginar-me na condição dos milhares de refugiados em todo o mundo, de milhares de pessoas cuja fragilidade de seus próprios corpos era sua única e última morada". Eu e minha própria família tentamos traduzir a fragilidade e a estupidez humanas, assim como os limites ilusórios que signos de proteção como a "casa" e as "roupas" representam", desabafa o artista.
  
De denunciante a denunciado... outra vez 
Mas a jornada de Ricardo Coelho com o estranhamento alheio ainda teria outra reviravolta. Desta vez no interior de Minas. Por uma segunda vez, de denunciante ele se encontraria como denunciado. "Estou sem dormir desde o ocorrido por causa dessa violência gratuita. Faço meu trabalho silenciosamente há 30 anos. E ver isso e minha família associada à pedofilia (distúrbio mental) e pornografia infantil (crime tipificado) é bastante revoltante. Receber uma interpretação maliciosa de uma autoridade que direciona a opinião pública para esse viés quando exatamente estamos provocando a reflexão sobre a fragilidade humana, é muito perturbador", lamenta o artista.

Para o historiador da arte, professor e referência em estudos sobre a produção artística, Jorge Coli, em palestra que inaugurou a última edição do prestigiado ciclo de debates "Mutações" com o projeto Sempre um Papo em Belo Horizonte, a mostra Estrangeiros e o ocorrido são significativos porque "mostram o quanto o corpo pode perturbar as pessoas. Nós constatamos reiteradamente reações violentas contra exposições de arte que buscam visões críticas sobre o corpo. A nudez "pode", mas só pode no segredo da pornografia", disse ele. Para Coli esse tipo de intepretação equivocada acompanha nossa história: "A arte instaura um corpo. O corpo da arte. Nos convida a olhar além das superfícies. A arte interroga. A arte abala padrões. A arte abala valores. E faz com que o corpo de pura visualidade se transforme em humanidade."

Superficialidade que se manteve no ocorrido em Uberaba e que para a advogada que defende Ricardo, Kátia Bizinotto, mostra o absurdo no tratamento à arte que ainda resiste no Brasil. Katia aguarda agora uma decisão do Judiciário para que as obras retornem à exposição e fiquem pelos 30 dias conforme contrato assinado com a Fundação Cultural de Uberaba. Para a advogada "uma resposta imediata, firme e pedagógica do Judiciário, uma das mais respeitadas instituições, é urgente para restabelecer a ordem, a importância da arte e a dignidade do artista e assim fortalecer a Democracia e a paz, pois o que houve além da censura foi a incitação ao ódio exatamente contra alguém que com sua arte erguia sua voz contra ele".

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